Vivo numa Baixada Fluminense em crise existencial

Quem lê a Voz da Comunidade já deve estar cansado de saber a bela história do Rene. Inspiradora. Crescente de sucesso. Forbes. Harvard. Alemão. Favela. Nova York. Só que esse papo pode ir muito além dos likes e corações no Instagram. A história do Rene serve pra inspirar a nossa geração e mostrar que precisamos ter um bocado de coragem pra promover mudanças significativas no lugar onde vivemos.

Sou muito grato ao Rene pelo convite pra contribuir toda terça-feira aqui na Voz da Comunidade. Sou Wesley Brasil, um jovem da Baixada Fluminense que acredita num mundo melhor através do amor, prazer.

Enquanto pensava e pesquisava sobre como estrear por aqui, encontrei um post do Rene em 2011. O então menino estava impressionado com a velocidade que as coisas tomaram. Estava assustado com a repercussão e possíveis problemas de segurança que poderia ter ao mostrar o perrengue que ele e seus vizinhos estavam passando. Era o início da revolução das redes sociais e as pessoas ainda estavam descobrindo o poder que aquilo tudo viria a ter. Não demorou pra ele mostrar a guerra no Alemão sob outro ângulo. Os olhos da mídia se voltaram pra lá e um banho de sangue ainda pior foi evitado graças a ações como as de Rene.

Teste 3

Mas aqui, parceiro, o papo é outro: Baixada é cruel.

Somos a periferia da periferia. Estamos atrás da Linha Vermelha. No além-metrô. Pós-Pavuna. Dizer numa entrevista de emprego que você é de Caxias, Belford Roxo ou Nova Iguaçu significa que seu patrão vai torrar uma grana com a sua passagem. Significa que você vai chegar o dobro de cansado e dormir duas horas a menos que seus colegas de trabalho. Significa que um táxi pra sua casa vai custar 100 pratas. Significa que, de alguma maneira, você tá ferrado.

A crueldade da Baixada continua ofuscando um lugar cuja vivacidade pode impressionar até o próprio morador. Eu vivo uma Baixada Fluminense vanguardista, repleta de saraus, cineclubes e festas. Moro numa Baixada que não tem nada a ver com a capa da Time, com os grupos de extermínio, com o resultado das escolas de samba do carnaval carioca, com a novela do plim-plim. Minha Baixada não tem clichê.

Essa ótica de uma Baixada Fluminense prafrentex está longe de ocupar os olhos do Rio e do país. Ainda somos um lugar de muitas carências, afastado geográfica e ideologicamente da capital carioca. Somos um lugar que historicamente coleciona histórias de anti-heróis, de antagonismos, de resistências… Uma linha de raciocínio que ouvi na adolescência fez meus olhos se abrirem para o que é a realidade da Baixada: enquanto o favelado carioca vive de perto o abismo social, nós não o enxergamos por estar muito distantes. O favelado carioca cresce vendo o playboyzinho e vê uma realidade diferente da dele, enquanto nós não percebemos sequer que existe uma outra perspectiva.
Enquanto a favela carioca conseguiu encontrar uma identidade, a Baixada nunca teve nem nunca terá. Nossa realidade é muito diferente. Temos uma séria crise de representatividade: uma única figura não consegue representar um lugar que é o mosaico do Brasil, que é um grande álbum de figuras do que é o nosso país. Do preto ao branco, do rico ao pobre, do Camaro 2015 ao Chevette 75 rebaixado, das ruas sem asfalto às noites no camarote: bebemos o sumo do que o Rio produz, do doce ao azedo.
Enquanto escrevia esse texto, resolvi falar com uma pessoa que conhece a Baixada há mais tempo que eu: minha mãe. Perguntei “o que é a Baixada Fluminnese” e ela respondeu de bate-pronto: “É um território à parte da sociedade”. Parecia ter sido combinado. Ela não teve acesso à metade das coisas que tenho acesso. É uma pessoa muito comum, que não vive essa Baixada Fluminense cult bacaninha que eu vivo. Mas nós compartilhamos os mesmos buracos na rua, os mesmos assaltos a pedestres, as mesas ruas mal iluminadas e os mesmos sons altos nos churrascos de domingo no vizinho. O sentimento de exclusão é democrático.

Os problemas da Baixada estão muito além da Avenida Atlântica.


Wesley BrasilSou Wesley Brasil, artista gráfico, especializado em projetos de engajamento digital. Fundei o Site da Baixada em 2006, acreditando numa Baixada Fluminense melhor através do amor.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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