Precisamos (também) de ficção ‘made in’ periferia

O entretenimento pela literatura pode ser um caminho viável para uma nova visão do território

‘Bonitinha, mas ordinária’, explicava Nelson Rodrigues. Sou fã de Nelson. Tem dias, inclusive, que desconfio que minha vida é um conto Rodriguiano que jamais será encenado – mas vai chocar muita gente com os altos e baixos, especialmente os ‘baixos’ dessa narrativa. E por mais que a gente busque retratar a realidade, tente narrar ‘a vida como ela é’, convenhamos: uma pitadinha de ficção vem bem a calhar.

Oras, estava eu questionando minha meia dúzia de seguidores no twitter (@wesleybrasil, segue lá!) sobre a possibilidade do meu primeiro livro quando uma pessoa, pesadíssima eu diria, me joga nos peitos que ela esperava que meu début literário poderia ser uma baita ficção ocorrida na minha quebrada, a Baixada Fluminense. Imagina só: ‘A dama do Japeri’, ‘Vestido de caxiense’ e outros clássicos recém-lançados num compilado de crônicas encenadas na terra de Capa Preta e Fani Pacheco? Sucesso de vendas.

A verdade é que o mercado de entretenimento sabe dialogar direitinho com a massa. Prova disso são os Harry Potter da vida batendo recorde de venda e virando filme. Até o meu queridinho ‘As vantagens de ser invisível‘ é baseado em livro. Aquele ‘O lado bom da vida‘ que assisti no Odeon e me arrancou dois copos d’água de lágrimas também. E toma-lhe biografia de youtuber bombando pra caramba. É youtuber virando livro, virando filme, virando atração de evento só pra dar autógrafo…

Teste 3

E por que a quebrada não ocupa esse espaço? A favela não é só ‘Tropa de Elite‘ não. Dá pra escrever muita história de amor de uma pessoa que vem de outro estado e vai parar na favela, se apaixona mas precisa voltar pro sertão. E agora? Lê o livro, caso alguém escreva. Dá pra escrever uma biblioteca inteira de histórias de amor contextualizadas na favela. E no nordeste. E no interiorzão desse Brasil.

Imagina só, daqui alguns anos, a gente ter uma novela daquela emissora famosa sendo toda baseada num livro legal que conta o amor entre uma menina do Capão Redondo (SP) e um rapaz da Rocinha (RJ) que se conheceram durante uma viagem pra Aparecida (SP)? Ou um rapaz de Belford Roxo (RJ) com um rapaz de Coroadinho (MA)? Sim, porque já estamos em 2016 e já não seria estranho estrelar dois rapazes num par romântico. Mas seria de ‘escandalizar’ colocar essa história numa favela, sem clichês, acontecendo com naturalidade.

Tenso.

O Brasil ainda tem tantos tabus que talvez seja uma baita viagem na maionese pensar na quebrada vivenciando belas histórias ficcionais que não retraem a violência. Mas sonhar ainda é de graça, queira a PEC 241 ou não.

Esse investimento (o sonho), ninguém corta.

* Foto de capa: Gabriela Duarte num dos episódios de ‘A vida como ela é’, veiculados na TV (clique aqui pra saber mais).

Esta coluna é de responsabilidade de seus atores e nenhuma opinião se refere à deste jornal.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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