Eles sabiam o que acontecia na vida dos vizinhos, mas não viram o câncer crescendo na própria casa

Quando penso no câncer de mama, a primeira coisa que me vem à cabeça é a história de uma jovem carioca, que conheci através do círculo de afeto – projeto voluntário, que criei para facilitar o desenvolvimento emocional, através de encontros em formato de círculo, onde o participantes praticam empatia e compartilham sentimentos positivos. Vou usar nomes fictícios para não gerar especulação sobre a verdadeira identidade das pessoas envolvidas.

Rio de Janeiro, outubro de 2015, uma quinta-feira de folga, com sensação térmica de 50 graus, daquelas que a gente só pensa na praia, água fria, mate com limão e cabelos voando ao vento. Estava saindo de casa rumo ao arpoador, quando o celular tocou. Atendi:
– Alô!
– Oi, é a Rosi do círculo de afeto?
– Sim, em que posso ajudar?
– Pode falar agora? Porque se tiver atrapalhando, ligo depois.
– Posso sim, estou em casa. É meu dia de folga.
Poxa, não vou demorar muito, tem que curtir hoje né?! Meu nome é Sofia, tenho 18 anos e participei da roda que você fez no morro. Achei legal e, mexeu comigo. Na hora que todos se abraçaram, eu quis chorar, mas segurei. Aí cheguei em casa e chorei no quarto. Lembrei de tudo que passamos por causa do câncer. Me deu vontade de te contar. Posso?
Liguei o ventilador, sentei na cama e respondi:
– Claro! Obrigada pela sua confiança, estou te ouvindo.

Eu morava com a minha mãe Ana Laura, minha irmã Luisa e o Bruno, marido dela, na mesma casa. Sempre tinham brigas com os vizinhos, por coisas pequenas. Todo mundo dava palpite na vida uns dos outros. A Luisa era muito competitiva e adorava uma treta. Aí, se a Marcia do 302, comprasse uma TV de 32 polegadas, ela contava para o Bruno e os dois arrumavam um jeito de comprar uma de 40. Gostava de ostentar e não levava desaforo pra casa. Não mesmo! A mãe brigava com ela, mas não adiantava, ela e o Bruno sempre achavam que tinham razão em tudo. Toda semana, a vida dos vizinhos, virava tema de debate na hora do jantar. As vezes me irritava e perdia a fome. E a minha mãe, levantava da mesa e ia fumar na janela. Ficava com um olhar meio triste e perdido. Você ainda ta ouvindo? (Disse ela com a voz tremula).

Teste 3

Ah com certeza, eu estava ouvindo e sentindo cada palavra. Como poderia não ouvir aquela menina corajosa que rompeu o silêncio, para compartilhar comigo suas emoções e memórias pessoais? Afirmei:
– Sim Sofia! Estou ouvindo com atenção, continue.
– Ah ta… Desculpe, estou um pouco nervosa… Então, numa conversa com a Fernanda do 403, minha irmã descobriu que a mãe da Marcia do 302, estava com um tumor na garganta. E, claro foi assunto na hora do jantar entre ela e o Bruno. “Ta vendo, isso deve ser castigo. Aqui se faz, aqui se paga”, dizia ela, como se achasse aquilo justo. Bruno ria, concordando. Eu ficava triste com eles sabe? A mulher tava com câncer e nem conseguia mais comer direito. Eu tinha 11 anos e aquilo me afetava de algum jeito. Eles sabiam do que acontecia na novela, nos jornais, no bar da esquina, mas não percebiam que eu preferia a farofada na praia do Flamengo, que ganhar presentes que perdiam a graça em duas semanas. Eles sabiam que o vizinho do 401 era gay, que o marido da nova moradora tinha fugido com a amante e até que o vizinho do 103 todo sábado chegava em casa vestido de branco, com cheiro de defumação do terreiro. Mas, não enxergaram o que acontecia com a mãe, dentro de casa. Eu comecei a sentir a tristeza dela, quando parou de cantar enquanto fazia café. Ela adorava Chitãozinho e Xororó e acho que a música evidências, era sua preferida. Quando ela começou a queimar o arroz, a parada já estava grave. Porque ela adorava dizer que o primeiro arroz que ela fez na vida para a vovó, era soltinho e bem temperado com alho…

Sofia respirou fundo, deu uma breve pausa e os meus olhos se encheram de lágrimas. Não chamei por ela, deixei que voltasse a falar:
– Desculpe, ainda dói falar disso… Soubemos dois dias depois da virada do ano, 2008 estava começando. Com a ajuda de uma amiga, ela contou para a Luisa e o Bruno. Eu estava no shopping com meus primos. Quando voltei pra casa, ela me chamou e disse que estava na hora de eu aprender a fazer arroz soltinho e fafofa com ovo. Fiquei animada. Gostava de fazer coisas junto com ela. Comecei cortando o alho. Ela pegou as cebolas que tinha deixado no freezer por uns dez minutos. Me disse que se não fizesse isso, iria chorar à toa. Lavei o arroz, deixei secar. Fritei o arroz com os temperos e misturei com água quente. Enquanto a gente esperava ficar pronto, ela pegou um ovo, me entregou e disse pra eu sentar na mesa, porque tinha uma coisa importante pra me contar. Senti um frio na barriga. “Soso, a mãe está doente. Tem um caroço do tamanho desse ovo crescendo aqui no meu seio. Vou fazer um tratamento e vai ficar tudo bem! (ela levantou, apagou o fogo do arroz e me abraçou) Preciso que você seja forte viu? Vamos vencer mais essa! (Comecei a chorar e não conseguia dizer nada) Sei que você ainda é criança, mas queria te dizer a verdade. E te pedir ajuda filha, porque quando eu não tiver mais forças pra cozinhar, é você que vai fazer o arroz pra mim. Combinado?” (respondi sim pra ela, balançando a cabeça e nos abraçamos).

Bom, eu queria poder dizer que ainda faço arroz soltinho para a mãe e que a Luisa ainda fala pelos cotovelos na hora do jantar. Mas, a mãe foi diagnosticada com câncer de mama, no estágio 4. Aconteceu tudo tão rápido! Em alguns meses, a doença se tornou cruel. E, ela partiu 1 ano e 4 meses depois do dia que me ensinou a fazer arroz. Ela tinha 52 anos. A Luisa, sofreu muito com a morte da mãe, se sentia culpada por não ter sido mais atenciosa com ela. Eu tive que amadurecer da noite pro dia. Aí no ano passado, ela descobriu um caroço no seio, quando experimentava um sutiã. Com 31 anos anos, teve que retirar parte da mama esquerda, perdeu o mamilo e os cabelos. Ah, perdeu o marido também. O Bruno disse que precisava de um tempo e não aguentava conviver com o câncer mais uma vez. Um dia ouvi ela falando para uma amiga no telefone, que ele não conseguia mais ver ela nua. Ele foi embora e parece que arrumou uma namorada. Ela ficou arrasada! Nem parecia mais a Luisa que adorava se arrumar, falar de todos os assuntos e rir alto.

Hoje, moramos só nós duas aqui em casa. Sinto falta do tempo em que chegava da escola, sentia o cheiro de alho fritando no óleo e do som da voz da mãe, dizendo: “Vai ter arroz quentinho no almoço hein!”. Sinto falta de ver a Luisa feliz, se arrumando pra ir se exibir no pagode. Ela venceu o câncer de mama, mas perdeu a autoestima. A gente não consegue conversar sobre os nossos sentimentos em casa, falamos mais com os amigos.
E, quando ouvi você falando da importância de falar coisas boas e demonstrar bons sentimentos para as pessoas que convivem com a gente no dia a dia. Percebi que tinha que perdoar a Luisa por ter sido ausente no passado. Ninguém é perfeito. Todo mundo erra né?

Respondi com o coração dando saltos triplos:
– Sim, todo mundo erra. Acredito que não existe um ser humano capaz de ser à prova de erros. Em algum momento da vida, vamos falhar e decepcionar as pessoas que nos cercam. Ninguém é totalmente bom ou ruim. Por isso, perdoar é libertador! Carregar rancores e ressentimentos a vida inteira, não faz bem. Mas, me conte, você falou com a sua irmã?

– Bom, falar sobre tudo que eu sinto, ainda não. Mas, fiz algo legal pra me reaproximar dela. Cheguei em casa, fiz o estrogonofe que ela adora e o arroz da mãe. Chamei a Luisa pra jantar e entreguei um bilhete, com uma frase que dizia assim: “Sei que não podemos voltar no tempo e mudar as coisas, mas se ainda estamos juntas aqui comendo arroz quentinho. Significa que temos razões para acreditar em dias melhores né?”. Choramos. Nos abraçamos e no outro dia, quando voltei do curso, encontrei ela maquiada, com um batom vermelho na boca. Me deu um beijo e disse toda animada: “escolhi um filme pra gente assistir, fiz pipoca com bacon, porque sei que você adora!” Sentamos no Sofá e rimos juntas das cenas engraçadas. No meio do segundo filme ela dormiu com a cabeça encostada na minha… Me senti tão feliz! Obrigada por me motivar! Agora entendo o que você falou: “O amor, é melhor que o rancor. Sinto que agora vamos cuidar melhor uma da outra e a mãe deve estar cantando nas estrelas.”

Que vontade de sair correndo pra dar um super abraço naquela garota!
Sofia e eu, conversamos um pouco mais e quando desliguei o telefone. Chorei de emoção e refleti sobre tudo que tinha acabado de escutar. Me sentia agradecida por ser testemunha de um belo exemplo de afeto e perdão. Mas, era o câncer de mama que dominava meus pensamentos. Lembro que me olhei no espelho e pensei: “Já faz tempo que não faço autoexame da mama e sou mais velha que a Luisa.” Tirei a parte de cima do biquíni e apalpei os meus seios para ver se encontrava algum nódulo. Nada. Ufa! Que alívio. Alívio? Não completamente. Amarrei o biquíni, vesti a blusa, peguei a bolsa e antes de chamar o elevador pra descer e aproveitar o dia de sol. Comecei a ligar para as mulheres que amava. Precisava perguntar se elas estavam se cuidando. Só consegui ficar mais tranquila, quando saiu o resultado da mamografia que fiz algumas semanas depois da nossa conversa.

Eu plantei a semente do afeto no coração da Sofia e ela plantou a semente da prevenção contra o câncer na minha consciência. A vivência de Sofia, me fez relembrar da importância de cuidar do meu próprio corpo e de quem eu quero bem, antes de cuidar do desenvolvimento emocional das pessoas mundo afora.
Então, a moral dessa história, não é sobre os erros deles, porque o “Eles sabiam o que acontecia na vida dos vizinhos, mas não viram o câncer crescendo na própria casa.” Pode acontecer comigo, com você, com nosssos amigos, inimigos e desconhecidos (apesar de raro, com homens também).

Na minha opinião, o grande vilão nessa história é o câncer de mama – um tumor maligno que se desenvolve nos seios. Uma doença que continua matando mulheres no mundo todo, de todas as raças, religiões e classes sociais. Na favela, no asfalto e no condomínio de luxo. Avós, mães, tias, madrinhas, primas, filhas, esposas, namoradas e amigas. Idosas, adultas e jovens em seus momentos mais produtivos e felizes da vida. Como por exemplo: Sheyla aos 14 anos, Carolina aos 25 anos, Luisa aos 31 anos, Dona Ana, mãe da Sofia, aos 52 anos. De acordo, com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, 14.388 pessoas morreram de câncer de mama no Brasil em 2013 – Desse total, 14.206 eram mulheres e 181 homens (2013 é o último ano com dados disponíveis).

Longe ou dentro de nossas casas, o câncer de mama continua fazendo vítimas. Por isso, as mulheres precisam conhecer suas mamas e ficar atentas às alterações suspeitas. Principalmente, as que têm entre 40 e 69 anos, que além do autoexame, não podem esquecer de realizar uma mamografia de rastreamento a cada dois anos.

Portanto, se você teve acesso a esse texto, torço para que entenda que a moral da história contada por Sofia também nos ensina, que enquanto temos saúde física, podemos repensar nossos erros, mudar comportamentos, discutir sobre os fatos do cotidiano nas redes sociais, cuidar com afeto de nós mesmos e dos outros. Mas, se negligenciarmos a nossa saúde e abrirmos a porta para o câncer, teremos menos chances de aproveitar o tempo ao lado de quem queremos bem.

Pensei em escrever uma frase de efeito neste último parágrafo, mas prefiro contar que fiz bolo de cenoura com chocolate e levei para a minha vizinha Marie – uma francesa de 70 e poucos anos, que perdeu a mama, mas não a capacidade de se sentir feliz com as pequenas coisas da vida. Um vez por semana, ela e o marido Reimond, marcam um jantar no restaurante da esquina – o namoro entre os dois, Já dura mais de 50 anos. Quando voltei pra casa, ouvi os áudios da minha amiga Priscila, contando que perdeu a tia para o câncer de mama, mas agora com o apoio da família e dos amigos, está lutando e vencendo bravamente outro tipo de câncer. Bravo guerreiras!

Compartilhe este post com seus amigos

Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram
WhatsApp

EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

Contato:
[email protected]