Mesmo com a pandemia de coronavírus e os casos no país evoluírem sem o menor controle, o Ministério da Educação se manteve a favor da realização do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em novembro, vestibular nacional que regula o acesso ao ensino superior no país. Na noite desta terça-feira (19), o Senado brasileiro aprovou, por 75 votos a 1, o texto-base que permitirá adiar provas de acesso ao ensino superior, o que inclui o Enem. O voto contrário foi do senador Flávio Bolsonaro.
Com as aulas ainda suspensas, permanece o desafio de ingressar no ensino superior para os estudantes das comunidades. Em sua posição anterior, o MEC ignorava as desigualdades que existem entre os estudantes país a fora. Antes de entrar no quesito Enem, é bom deixar claro quem é o Brasil e quem são os brasileiros com quem esse governo se comunica, e para quem governa.
Assim é o “povo” do imaginário dos principais apoiadores do governo: brancos, louros e escandinavos. Um grupo que não tem vergonha de negar a pandemia de coronavírus, nem de pedir a volta da ditadura e que também não se importa de colocar o dinheiro acima da vida, dos direitos e da liberdade (dos outros). Ao roubar o lema “Todo Poder Emana do Povo”, e outras hashtags de apoio ao governo, é um povo muito bem definido e delimitado a quem se referem, e, apesar de falar em nome do povo, não é com a real população brasileira que eles se identificam ou conectam, muito longe disso.
Teste 3
A elite com síndrome de Caco Antibes que se acha europeia porque tem um tataravô europeu, mas acha que cotas não deveriam existir porque “o que tem a ver se o seu bisavô foi escravo?”. E a classe média, que acha que agindo como essa elite, irá desfrutar dos mesmos privilégios. O “povo brasileiro” a quem o governo se dirige é uma minoria com síndrome de Estocolmo, dissonância cognitiva e distúrbio de imagem.
Enquanto isso, o restante da população é lançado à própria sorte e tratado como descartável. Se o CNPJ morrer, a economia do país piora, mas, se o CPF morrer, o CNPJ contrata outro CPF. É dessa ótica que surgem o “E daí? Quer que eu faça o quê?”, a imagem com as crianças suecas, a manutenção do Enem, e o vídeo que só faltou dizer aos estudantes “elas que lutem”.
Entretanto, quem conhece de verdade a realidade das periferias e dos estudantes de baixa renda está se empenhando em manter acesos os sonhos desses alunos, e cuidando para que não desanimem. Um trabalho fundamental, mas que é invisível na sociedade de consumo e de aparências, que exige muita coragem e empatia para lidar com quem a sociedade acha que é descartável.
No Pré-vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR) somos um corpo de professores, coordenadores e colaboradores voluntários. Em 2019, tivemos alunos aprovados na UERJ e na PUC-Rio, com bolsa integral. A turma de 2020 começou com 27 alunos, e tivemos 5 semanas de aula presenciais. Estamos em quarentena desde a terceira semana de março e decidimos seguir com as aulas on-line. Antes disso, enviamos um questionário aos alunos para ver quais seriam as condições ou dificuldades dos alunos em acompanhá-las, pois sabemos que nem todos tem computador em casa. E o que descobrimos é que a maioria só tem mesmo o celular como ponto de acesso à Internet. Então, veio a preocupação com a escolha da plataforma, para que os alunos não tivessem que se preocupar em baixar e rodar diversos aplicativos.
Também procuramos manter as ferramentas mais acessíveis a todo celular, como as redes sociais. Depois, tivemos também que adaptar o formato da aula para que ficasse mais participativo e menos conteudista, para aproximar os alunos e deixá-los mais confortáveis, já que tivemos poucas aulas presenciais para criar laços com a turma.
Além disso, tivemos a preocupação em passar conteúdo de uma maneira que não ficasse sufocante e que eles não se sintam sobrecarregados de material para dar conta. Outro fator que pesa sobre nós, professores, é que por vezes as escolas públicas sofrem com a falta de professores em determinadas disciplinas, como Química, por exemplo, e recebemos alunos que concluíram o ensino médio mas que pela primeira vez estão vendo certos conteúdos que seguirão sendo cobrados pelos vestibulares. Esse quadro pode se intensificar com a concretização da reforma do ensino médio, aprovada por Temer em 2015 e que ainda está em vias de implantação.
Na prática, apesar de todos os alunos terem celular com acesso à Internet, nem dez alunos, dos 27, conseguem acompanhar as aulas ao vivo. Alguns preferem assistir aulas gravadas, pois o ambiente doméstico é mais tranquilo em horário diferente, ou eles tem outras tarefas para cumprir. Notamos diversas particularidades, com as quais estamos aprendendo a lidar.
Todas essas preocupações vêm do fato de sabermos que estudantes de baixa renda geralmente vem de escolas públicas, que muitas vezes não dispõem de um espaço privado ou confortável para estudar, não dispõem de muitos recursos (seja material físico ou outros recursos multimídia) e não estão acostumados a uma alta demanda de tarefas e estudos. Conhecemos porque somos um pré-vestibular que atua há 17 anos em uma comunidade e cujo corpo docente inclui ex-alunos do pré e moradores da Rocinha.
Vale ressaltar que muitos alunos chegam a um pré-vestibular comunitário buscando apoio para criar e manter uma rotina de estudos, assim como procuram por laços e representatividade: ver que outros, antes deles, entraram em uma universidade e hoje seguem a carreira que escolheram amplia o horizonte desses alunos e os incentiva a perseverar. Acima de passar conteúdo, nossa maior motivação é manter vivo o sonho desses alunos.
Desde o início da quarentena, temos reuniões a cada quinze dias para nos adaptarmos da melhor forma à necessidade dos alunos, e agora conseguimos uma parceria com um grupo de psicopedagogos pra nos ajudar nessa missão.
De nada vale o Ministério da Educação escolher passar como mensagem de motivação aos alunos um simples “estude”, ignorando que muitos estudantes não têm condições materiais de encontrar um ambiente tranquilo, sentar-se e ler um livro, ou fazer exercícios, por duas ou três horas seguidas – ou mais. Quantos não tem um celular com bastante memória, que permite acessar aplicativos modernos? Quantos alunos tem uma conexão de internet boa? Isso pra não falar nos alunos que trabalham para complementar a renda familiar e seguem trabalhando mesmo na pandemia; ou aqueles que perderam sua fonte de renda. Estudantes adultos que cuidam da casa, alunos e alunas chefes de família. Alunas que são mães, irmãs mais velhas, filhas, e tem alguém para cuidar.
Estudar é uma tarefa complexa e há muita coisa por trás disso. Alunos e professores não são robôs, e educação não é mercadoria.
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