Faltando menos de três meses para completar um ano do desabamento de dois prédios em um condomínio na Muzema, a situação não parece ter progredido desde então. No dia 21 de janeiro, moradores de seis prédios vizinhos relutaram em deixar suas casas para que novos testes fossem feitos nas estruturas. A prefeitura já havia isolado os edifícios e inclusive conseguido autorização na justiça para demolir as construções irregulares. Com o risco de ficarem sem ter onde morar, as famílias conseguiram, após muitas conversas e negociações, que a prefeitura realizasse novos testes estruturais ao invés da demolição pretendida. Ainda assim, os moradores temem ser despejados, sentimento totalmente compreensível considerando que, de uma hora para outra, um investimento de anos pode simplesmente desaparecer, seja pelas mãos da prefeitura ou por uma nova tragédia.
Além da incerteza com relação à estabilidade dos prédios, não é de hoje que o poder público demora em prestar o devido suporte às vítimas que perdem suas casas em desastres naturais ou estruturais, pessoas que necessitam de todo apoio e auxílio no momento mais vulnerável de suas vidas. São inúmeros os relatos de falta de fiscalização nas encostas, falta de vistoria nos imóveis em área de risco, obras de contenção inacabadas, falta de orientações à população em áreas de risco, famílias não cadastradas pela prefeitura e aluguel social bem abaixo do valor de mercado dos imóveis, fazendo com que as pessoas tenham que morar com parentes ou se mudar para áreas distantes de onde moram e trabalham, sem contar a dor psicológica que tais pessoas passam ao perder todos os seus bens.
A maioria das vítimas são pessoas de origem humilde que perderam tudo de uma hora pra outra e se veem desamparadas, sem ter onde dormir, dependendo de parentes e tendo que juntar forças para começar do zero. Contudo, algumas dessas tragédias poderiam ser evitadas. No caso dos desastres chamados naturais, como os deslizamentos de terra causados por temporais, é no mínimo vergonhoso que a prefeitura do Rio de Janeiro não tenha entre suas prioridades preparar a cidade para as chuvas de Verão. E não é por falta de opção ou de estudos: a gestão anterior preparou o plano Rio Resiliente para lidar com a intensificação dos eventos naturais que ocorrem na cidade.
Teste 3
Em 2019, pelo menos três chuvas de forte intensidade caíram no Rio, uma delas em 8 de abril, deixando 10 mortos. Na ocasião, a prefeitura resolveu apelar para “chuva atípica” como explicação, porém, o plano Rio Resiliente, de 2016, já apontava para o aumento em frequência e intensidade dos temporais de Verão – típicos, isso sim, de uma cidade tropical entre o mar e a montanha. A ambientalista Milena Batista fez um fio no Twitter contando mais sobre o Rio Resiliente.
No caso da Muzema, o desabamento foi fruto de erro humano – muitos erros de muitos humanos. Apesar de irregulares, as construções de 5 andares, com fachadas em porcelanato, varandas e localizadas em ruas amplas – diferente das casas com tijolos à vista e das vielas que predominam nas favelas “tradicionais” – chamam a atenção de quem juntou o máximo que conseguiu durante uma vida de trabalho assalariado para realizar o sonho da casa própria, almejando segurança, conforto e independência. Os valores baixos são mais um atrativo para qualquer um que deseje sair do aluguel e morar próximo às áreas nobres da cidade.
Tantos atrativos têm um preço caro, que não é cobrado em reais, mas sim em vidas, e não apenas vidas humanas! É bom lembrar que as árvores também são seres vivos, e servem de abrigo e alimento para os animais que moram nas áreas de proteção ambiental. No entanto, o que permite a oferta destas construções, dentre outros fatores, é justamente a destruição das áreas verdes, promovida pelo crescimento das milícias na zona Oeste, última fronteira da urbanização da capital carioca.
Nem mesmo o desabamento que vitimou 24 pessoas pôs fim ou desacelerou a construção de imóveis irregulares no local. As construções continuam a todo vapor, alterando a paisagem local, desmatando, ocupando encostas e aterrando áreas alagadas. Reportagens mostraram o avanço da urbanização irregular na região próxima aos prédios que desabaram e ainda em uma parte da da lagoa de Jacarepaguá, que chegou a ser aterrada para construir mais casas.
Essas alterações nas áreas verdes, apesar de radicais e maléficas do ponto de vista do meio ambiente, são bastante comuns na urbanização moderna. A história do Rio de Janeiro é um exemplo perfeito dessa dinâmica: repleta de aterramentos, desmonte de morros, derrubada de florestas, poluição e tantas outras modificações, acumulando impactos ambientais cujas consequências são sentidas até hoje – como nos alagamentos e deslizamentos de terra “causados” pelas chuvas de Verão.
Porém, as condições irregulares, tanto do ponto de vista legal quanto técnico, em que essas mudanças ocorrem na zona Oeste do Rio aumentam ainda mais os riscos associados à ocupação dessas áreas. Uma encosta arborizada, por exemplo, tem o poder de drenar a água das chuvas, o que não acontece em áreas asfaltadas nem nos barrancos desmatados. Sem obras de contenção ou estrutura apropriada para suportar os imóveis, inundações e deslizamentos são apenas uma questão de tempo.
Para agravar a situação, desmatamento e urbanização irregular da zona Oeste ocorrem em locais que estão dentro de áreas de preservação ambiental, as APAs. Uma área que pertence ao poder público e que deveria ser cuidada e preservada pelo mesmo, mas que está sendo invadida e gerando lucro para o poder paralelo. A “imobiliária da milícia” vende pela internet terrenos localizados em Campo Grande no valor de R$79 mil, de acordo com reportagem do G1.
A preservação das áreas verdes urbanas é chave para manter o equilíbrio dentro e fora dos parques florestais, e o avanço das construções irregulares comprometem esse equilíbrio. A ocupação dos morros cariocas começou no século 19, quando as pessoas mais pobres se instalavam em cortiços e nos morros do Centro para morar próximo ao trabalho. Essa dinâmica continuou com o surgimento das favelas na Zona Norte e Sul e se repete até hoje, com as construções irregulares mais recentes em morros, mangues e áreas de preservação na Zona Oeste.
Estudo realizado por Valéria Grace Costa e publicado na Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro trata das características e tendências de expansão das favelas na cidade de 1980 a 2005 ¹. Nesse período, surgiram 290 novas favelas na cidade, a maior parte delas entre os anos 1990 e 2005. A autora nota que nas zona Norte, Central e Sul o aumento se deu no número de moradores, na expansão do território e na verticalização de favelas já existentes. A zona Oeste também teve expansão em suas favelas, e foi onde surgiu o maior número de novas favelas: um terço do aumento da população moradora de favelas ocorreu na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá. A Muzema foi uma das comunidades que surgiu neste período. No “asfalto”, a população desses bairros também aumentou, em 1,7% e 6% ao ano, respectivamente.
Uma tendência importante que o estudo mostra é que, tal qual as primeiras favelas, as novas favelas e áreas periféricas da cidade continuaram a surgir da ocupação de morros e áreas verdes. Os espaços que não foram “formalmente” ocupados, pois não chamavam atenção das construtoras devido aos problemas geotécnicos, viraram verdadeiros bairros nas mãos da população que improvisava suas moradias.
Hoje em dia, os espaços ociosos da cidade fazem parte de unidades de conservação ambiental, como o parque estadual da Pedra Branca, que representa, sozinho, 16% do território municipal. Ele abrange os bairros de Campo Grande, Bangu, Realengo, Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes, e está localizado na zona Oeste, a maior região do município do Rio de Janeiro, representando 74% da área total da cidade.
Dois fatores principais ajudaram a ocupação irregular massiva da zona Oeste nas últimas três décadas: a urbanização dos bairros da Barra, Jacarepaguá, Recreio e Campo Grande, e a disponibilidade de terrenos vazios. No estudo, Valéria aponta que “as unidades de conservação são as últimas fronteiras a serem ocupadas”. Por muito tempo, esses lugares foram esquecidos pelas autoridades e, mesmo depois das demarcações ambientais, seguem sendo tratados com negligência. Isso fica claro no caso da urbanização irregular promovida pela milícia, passando por cima de qualquer limite legal, técnico e ambiental. O Parque Estadual da Pedra Branca, por exemplo, é cercado por áreas urbanizadas, e a falta de opções para uma população de baixa renda que precisa de moradia pressiona a ocupação dos espaços verdes, um prato cheio para a prática de desmatamento aqui mesmo, dentro de uma das maiores cidades do país.
Apesar da sua importância ambiental, esses terrenos são vistos como “mato” pela maior parte das pessoas, e esse tipo de percepção é reforçada quando o poder público não cumpre seu papel de fiscalização, preservação e também de conscientização. Sem mencionar a falta de planejamento urbano e de políticas de habitação popular para que as pessoas, sobretudo os mais pobres, não precisem invadir unidades de conservação e improvisar suas moradias em áreas de risco e nem se sintam atraídas a comprar imóveis irregulares e inseguros. No fim das contas, a negligência das autoridades tanto com as políticas habitacionais quanto com a preservação ambiental resulta em racismo ambiental, pois obriga os mais pobres a ocuparem áreas de risco, e as mesmas autoridades ainda jogam a culpa da ocupação desordenada das áreas verdes nessa mesma população, dizendo que a pobreza é inimiga do meio ambiente, como declarou recentemente o ministro da Economia.
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Estudos acadêmicos utilizados neste artigo:
1 Traços e tendências recentes da expansão das favelas no município do Rio de Janeiro. Valéria Grace Costa. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. 2011.
2 Questão fundiária em áreas protegidas: Uma experiência no Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), Rio de Janeiro, Brasil. Allan Yu Iwama, Fábio Bueno de Lima, Angela Pellin. Soc. & Nat. 2014.