Por: Rodrigo Bodão
Poeta, psicólogo, pesquisador e integrante da equipe técnica da ESPOCC
Janek é um jovem alemão. Estudante, pesquisador, há cerca de um mês frequenta a Maré, mais especificamente as favelas de Parque Maré e Nova Holanda, acompanhando as atividades da ESPOCC – Escola Popular de Comunicação Crítica do Observatório de Favelas. Em conversas com os colaboradores e alunos, Janek traz seus questionamentos e apresenta algumas considerações, percepções e estranhamentos sobre essa vivência na cidade do Rio de Janeiro.
Um primeiro e talvez mais marcante estranhamento expresso por Janek diz respeito ao seu contato quase diário com a polícia militar. Quase todo dia, quando sai da Maré, é parado e revistado por policiais, cuja presença tem sido bem mais frequente atualmente por conta do processo de pacificação que se desenvolve na região. Perguntam seu nome, pedem documentos, revistam seus bolsos e mochila com uma agressividade que sempre o surpreende. Em seus relatos, além da agressividade, uma coisa lhe chama a atenção em particular: os policiais constantemente o questionam sobre o que está fazendo ali. “ É como se eu não tivesse o direito de ir e vir, como se eu não pudesse ou não devesse estar aqui. Mas por que eu não posso estar aqui? Por que eu não posso morar aqui?”, pergunta ele, atônito.
Teste 3
Outra surpresa narrada por Janek diz respeito à quantidade de armas que os policiais carregam ostensivamente em toda a cidade, especialmente os fuzis, armamentos pesados, de guerra. Para além de uma certa ingenuidade com a situação e com o contexto que o cerca e do ímpeto carioca de reagir ironicamente às questões trazidas por Janek, seus estranhamentos são poderosos questionamentos ao nosso próprio modo de habitar, conviver e circular na cidade.
Seus estranhamentos, muitas vezes, nos denunciam ou produzem outra forma de estranhamento: a de como, em certa medida, passamos a dar contornos triviais para cenas e fenômenos absolutamente absurdos como o porte ostensivo e indiscriminado de fuzis, ao modo como os policiais se comportam e atuam nas favelas, ao próprio clima de tensão disseminado pelas tramas e emaranhado de ruas, corações e mentes que moldam o tecido urbano carioca e de toda a região metropolitana do Rio de Janeiro.
Os estranhamentos de Janek e de tantos outros, estrangeiros ou não, por vezes apenas moradores de outros territórios, nos fazem estranhar a nós mesmos. E nisso talvez resida a grande virtude presente nesses encontros e grande parte do potencial que se apresenta quando insistimos na proliferação dos encontros como instrumento político de mobilização e luta. Porque nesses encontros possibilitamos a efervescência – o fervo – e o contato necessário para a proliferação dos estranhamentos, condição fundamental para que se produza um questionamento sobre o modo como vemos e percebemos as coisas e o mundo.
Elemento fundamental para que se propague a ideia de que não é natural o uso ostensivo de fuzis e armamentos de guerra por quem quer que seja; que não é natural o número de jovens negros mortos cotidianamente no país por conta da violência; que não ́é natural que os cidadãos tenham seu direito de ir e vir violado ou que escolas se fechem e pessoas sejam expostas ao risco de morte por conta de confrontos armados e operações policiais; que não é natural que jovens
sejam impedidos de circular pela cidade e ir à praia para prevenir assaltos, implodindo de maneira vil, cruel e perversa um princípio legal básico da presunção de inocência e do direito de ir e vir – não, definidamente, nada disso é natural!
Mas para isso precisamos do outro – sempre. Do olhar do outro. Da diferença. De conviver com a diferença do olhar do outro e ampliar assim o alcance do nosso próprio olhar e horizonte. Disseminar nossas ideias, encontrar outras leituras, produzir questionamentos.
Desconstruir, desnaturalizar e construir de novo juntos e de modo diferente. Proliferação de encontros e estranhamentos que repercutam, produzam e disseminem a noção de que a rua é nossa, a cidade é nossa e que juntos – cada vez mais juntos e numerosos, podemos construir elos fortes e potentes o bastante para lutar e efetivamente vivenciar o que nos é garantido por lei e conquistado como direito.