Foto: Arquivo da Equipe Pedagógica
Edição: Elena Wesley
“Tia, por que eu não apareço nos vídeos de acolhimento?”. O questionamento de uma aluna sacudiu a Creche Municipal Margarida Gabinal em 2006 e fez a direção e professores refletirem: se as crianças negras não se viam representadas nas imagens das atividades, a escola poderia estar falhando em vários aspectos ligados à negritude.
Teste 3
“Refletimos muito sobre o fato e analisamos outras questões: declaração de cor que os responsáveis dão na matrícula, os murais, os brinquedos, os livros, quando e como as pessoas negras eram representadas na creche, e como as crianças estavam construindo sua identidade, partindo do princípio que a grande maioria é afrodescendente”, conta Isabel Barbosa, diretora da unidade que fica na Cidade de Deus.
A partir daquele episódio, a creche reformulou seu projeto político pedagógico. Com a experiência sobre o tema que havia adquirido em outras escolas, Isabel buscou implementar projetos e levantar discussões na unidade. O “Desfile da Beleza Africana” foi o primeiro a entrar no calendário escolar e, hoje, é um dos mais esperados do ano. No evento, os responsáveis fazem penteados e vestem as crianças com roupas inspiradas na cultura e moda africana.
A mudança no ambiente escolar foi perceptível e motivou a direção a pesquisar mais sobre o tema, o que a levou à Lei 11.645/08, que obriga escolas públicas e privadas a ensinarem história e cultura afro-brasileira e indígena. Assim, surgiu outra iniciativa, a “Kizomba: a festa da raça”, organizada na festa do Dia das Crianças, com a proposta de mostrar a África e as raízes africanas, ressaltando aspectos geográficos da fauna e flora do continente. Todos os educadores da creche se vestiram com estampas em referência aos animais da África. As crianças também aderiram aos trajes com ajuda dos responsáveis, professores e duas trancistas que fizeram os penteados. Para completar a festa, as músicas e as comidas tinham inspirações africanas.
Em 2018, a equipe escolar identificou um novo problema: a dificuldade de aceitação dos cabelos crespos e cacheados por parte de algumas alunas. Assim, surgiu o “Pérolas Negras: visões da infância sobre o universo negro feminino”. A proposta se baseou em ajudar no processo de formação da identidade das crianças, que têm entre 11 meses e 3 anos de idade. Na atividade “Deixa eu ver?”, os alunos fotografaram moradoras da Cidade de Deus de diferentes faixas etárias, que se voluntariaram.
O sucesso dos projetos gerou reconhecimento e premiações. A diretoria da creche inscreveu as fotos de forma anônima para concursos da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO UFRJ), o ECO Categoria Ensaio em 2008, e o ECO Outras Janelas, no ano seguinte. A creche ganhou a premiação, e as crianças puderam ver as imagens que haviam produzido em folders na universidade.
“Essas fotos revelam muita coisa. Revelam o olhar dessa criança preta, da visão que ele tem e das possibilidades dessa favela. Crianças de 2 e 3 anos que são capazes, às vezes, não de elaborar todo um discurso através da fala, mas de passar totalmente sua compreensão desse momento, da sua realidade e de ver possibilidade através da fotografia”, destaca Isabel.
O impacto nos alunos e nas famílias é que traz mais satisfação aos educadores. As atividades resultaram na construção positiva de personalidades e de um ambiente onde crianças negras são respeitadas pela inteligência, cultura, beleza e compreendem a contribuição de seus antepassados para a formação da sociedade. “Percebemos claramente a formação da identidade de uma forma mais positiva. As crianças gostam de se ver representadas. Se identificam nos murais, nos livros e nos seus brinquedos. Hoje vemos as crianças em harmonia com sua autoimagem”, conta a diretora.
Entenda a lei que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira e indígena nas escolas
A população negra, que é calculada pela soma de quem se autodeclara preto ou pardo, corresponde a 56% da população do país, segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar dos números, a forma como as pessoas negras são representadas ainda reforça estereótipos.
Como a escola é um dos principais ambientes de referência na construção da identidade e da autoestima de crianças e adolescentes, a lei se tornou uma grande conquista do Movimento Negro e de movimentos sociais para garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas que, historicamente, negou e escondeu dos negros a possibilidade de se conhecerem e se reconhecerem.
A Lei nº 11.645/08 engloba escolas públicas e privadas do ensino fundamental ao médio. É obrigatório que o conteúdo programático inclua a história e cultura que caracterizam a formação da população brasileira a partir desses dois grupos étnicos. Ou seja, o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira, o negro e o indígena na formação da sociedade de modo que apresente sua contribuição social, econômica e política da história do país.
“Trata-se de reeducar as relações étnico-raciais, afim de que todos, sejam descendentes de europeus, asiáticos, africanos ou indígenas reconheçam a identidade, a cultura e a história dos negros, que constituem o segmento menos privilegiado da sociedade reconhecida hoje como brasileira”, afirma Jonas di Andrade, ativista social e professor do pré-vestibular comunitário Nica Jacarezinho.
Doze anos depois, o cumprimento da lei ainda é raridade
A Creche Margarida Gabinal percorreu uma longa trajetória até alcançar bons resultados, a começar pelos professores, que tiveram o primeiro contato com uma proposta de educação antirracista na creche. Segundo a diretora Isabel Barbosa, a maioria não havia estudado sobre a temática étnico-racial na universidade, ou até mesmo desconheciam a Lei nº 11.645/08. Por isso, houve um grande investimento na conscientização dos educadores, por meio de leituras, vídeos, cursos, troca de experiências e incentivo de buscar conhecimento sobre o tema.
Os responsáveis também apresentaram desconfiança logo no início da adaptação pedagógica, por motivos religiosos. Algumas famílias associavam aspectos da cultura negra a um entendimento negativo que possuem a respeito de crenças que se diferem das suas. Coube à escola estender a conscientização aos responsáveis, com conversas explicativas sobre a lei e os valores constitucionais. Hoje, a creche percebe os bons resultados entre todos os envolvidos no processo.
Contudo, dados do Inep apontam que a unidade da Cidade de Deus é uma exceção e que seu protagonismo pode estar mais ligado à dedicação dos profissionais do que à oferta de ferramentas por parte do poder público. De acordo com o Censo Escolar de 2015, 24% das escolas públicas do Brasil não têm projetos para combater o racismo. Segundo o questionário realizado pelo Inep, dos 52 mil diretores de escola, 12 mil delas não tinham projetos com temática racial. Uma outra pesquisa realizada no mesmo ano, pelo Ministério da Educação (MEC), revelou que somente 7,6% das 105 escolas entrevistadas usam material didático com conteúdos sobre cultura africana. Os demais 92,4% não informaram se discutem a temática.
“Diferente da teoria, na prática, a lei não tem sido efetiva. Diante do projeto político que temos para educação, não há qualquer ação fiscalizadora por parte do governo que faça com que essa seja executada, tanto em escolas públicas quanto em particulares. Grande parte dessas cumprem com a lei restringindo ao dia 20 de novembro [Dia da Consciência Negra]. O racismo, estrutural e estruturante, ainda atravessa corpos e mentes e no próprio espaço escolar isso se sucede. Portanto, é necessário a reformulação, bem como a fiscalização, para que as escolas se responsabilizem pelo seu cumprimento. Se é lei, tem que ser cumprida”, afirma Jonas di Andrade.
A Secretaria Municipal de Educação (SME), no entanto, afirma que cumpre a Lei nº 11.645/08. De acordo com a SME, as escolas são orientadas a seguir em seus planejamentos o que determina o Currículo Carioca, “que ao longo desses anos incluiu o tema étnico-racial no material didático”. A pasta acrescenta que a Coordenadoria de Material Pedagógico orienta os professores elaboradores a fazer uso de projetos desenvolvidos por instituições como o Ministério da Educação (MEC), Fundação Palmares e outras, com conteúdos sobre o ensino de africanidade, e que a secretaria tem parcerias com o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira e o Conselho Municipal de Defesa do Direito do Negro (Comdedine).
Veja as propostas dos candidatos à Prefeitura sobre a Lei nº 11.645/08
Benedita da Silva (PT)
Para a candidata é importante dar base aos professores e alunos da rede municipal de ensino para sua aplicação pedagógica. Benedita da Silva complementou dizendo que por respeito à ancestralidade, não pode deixar que esse legado fique invisível.
Clarissa Garotinho (PROS)
O plano de governo da candidata cita o cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com a implementação definitiva do ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas. Clarissa Garotinha também afirma que em sua gestão fortalecerá mecanismos de combate ao preconceito racial e de promoção do diálogo inter-religioso.
Eduardo Paes (DEM)
O candidato afirmou que assume o compromisso de valorizar a história da cultura afro-brasileira e indígena nas atividades culturais e educativas do Rio de Janeiro. O ex-prefeito também ressaltou a preocupação para que os planos e atos da prefeitura sejam incentivadores do fim da segregação e do preconceito racial.
Fred Luz (Novo)
Questionado sobre a Lei 11.645/08, o candidato afirmou que a prioridade de seu plano de governo é garantir a alfabetização ao fim do primeiro ano do ensino fundamental, sem aprovação automática. Segundo Luz, à medida em que o aprendizado melhore, ele cuidará para que os educadores recebam capacitação para aplicação da lei.
Glória Heloiza (PSC)
Como proposta a pauta, Glória Heloiza planeja uma revisão do conteúdo programático das escolas, por uma comissão de professores e além das disciplinas básicas (português e matemática) e tecnológicas, será incluído o ensino de cultura afro e indígena, como determina a lei. Também garante investir em qualificação para os professores da rede de ensino municipal.
Luiz Lima (PSL)
Este alegou que pretende criar um grupo de trabalho para analisar e fazer cumprir toda a legislação voltada para a garantia de direitos das minorias. Luiz Lima aponta que através de ações educativas e investimentos públicos é possível valorizar o patrimônio imaterial da cultura de matriz africana na cidade.
Martha Rocha (PDT)
A candidata pretende aproximar o mundo do samba da educação. A proposta é dar apoio financeiro às escolas de samba e, em contrapartida, as agremiações participarão de projetos sociais e educacionais na rede municipal de educação. Segundo ela, com isto os alunos conhecerão com mais profundidade as raízes africanas e indígenas, e compreenderão a riqueza e diversidade cultural brasileira.
Renata Souza (Psol)
Renata Souza visa promover a inclusão e valorização das culturas de matriz africana e indígena nos conteúdos curriculares das escolas públicas do município. E, para isto, propõe identificar as necessidades de cada escola para formular medidas de ensino e aprendizagem, incluindo o que é previsto na Lei nº 11.645/08. Outra proposta da deputada estadual é fazer convênios com universidades para permitir a formação continuada de professores e em material pedagógico.
Os demais candidatos não responderam até a data de publicação desta reportagem.