Por: Kassia Kapella para a Folha de S.Paulo
A frase do cantor e compositor Beto Sem-Braço cabe a múltiplos contextos, mas vamos falar aqui sobre a luta antimanicomial, essa luta diária, árdua, por um modelo de saúde e de sociedade que respeite os direitos humanos e a diversidade nos planos de atendimentos, não cabendo um só caminho.
O nome luta antimanicomial é sugestivo, afinal deixa explícito que não se trata de uma posição a favor do manicômio. Mas o que isso quer dizer na prática?
Teste 3
Tenho tentado, cada vez mais, falar sobre o modelo de sociedade que quero e construo, seja no miudinho, naquela conversa na convivência e sala de espera do Caps (Centro de Atenção Psicossocial), seja no ponto de ônibus, na fila do banheiro, no caixa do supermercado.
Isso é falar sobre a luta antimanicomial. Sim, porque não basta ser antimanicômio enquanto aquilo que vemos em novelas, filmes, contos, livros, séries se assemelham a estruturas físicas mal assombradas em que ficavam pessoas em sofrimento psíquico trancadas, em camisas de força, tomando eletrochoque.
Falando assim parece óbvio que muita gente não concorda com isso, essa violência escancarada, ou, em outras palavras, maus tratos. Mas é difícil falar e lutar por uma sociedade sem manicômios no miudinho, defendendo contradições. Mas então, de que se trata?
Eu poderia rascunhar aqui uma meia dúzia de conceitos importantes para falar do tema, cumprindo com minha promessa de, só por hoje, poder não falar das mazelas. Opto por falar sobre a experiência do 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial.
A experiência desse ano foi vivida com muita euforia por quem estava ansioso pelo retorno às ruas após dois anos sem a afetividade que esse encontro nos permite. O 18 de maio é um encontro de luta, mas também de festa. Pode ser de carnaval, de jazz, de samba. De artes plásticas, artes visuais, de arte de rua, de teatro, de livre expressão, de livre manifestação e de repúdio e renuncia a tudo que tranca, cala, anula a existência.
Dia de troca de abraços, de fortalecer uns aos outros, de dizer como o trabalho do outro é incrível, dia de revisitar o passado, lutar no presente, pavimentar para luta futura. E quando a loucura tá na rua, muita coisa acontece no miudinho que combate os manicômios.
O trabalho no Caps deve ser o 18 de maio todos os dias, poder olhar para tudo que é difícil, mas também ter espaço para festa. Fizemos a saída do Caps Rio de Janeiro para o ato no centro da cidade.
Organizar-se para a saída no Caps é um misto de muito planejamento e muita abertura para o que vai acontecer. Mas nada é feito sem conhecimento, sem ciência, sem técnica, ou, melhor dizendo, no nosso campo da atenção psicossocial, sem clínica. E a clínica na luta antimanicomial é política porque qualquer plano de cuidado precisa ser pensado a partir daquele sujeito que a gente cuida, na cidade e no seu território.
Todas as delícias e embaraços de se estar na rua -que para nós pode ser algo banal, mas para quem viveu muitos anos trancafiado ou está, neste momento, preso nas vozes da cabeça, não.
Hoje a gente precisa olhar para esse sujeito e pensar quem é ele nesse governo que é anticiência, que defende tranca, fome, eugenia, desemprego, volta do choque e outros maus tratos.
Se para nós trabalhar na rede SUS era uma militância diária por si só contra todas as opressões geradoras de desigualdade no acesso a direitos e ao cuidado, hoje é uma militância de afirmação de vidas que o atual governo deixa claro querer matar e fazer morrer.
Por isso, 18 de maio é um dia de falar que não é só médico e remédio que cuidam de todo mundo; de parar para pensar que a falta de pão, moradia e trabalho também adoecem; que a presença do Estado nos territórios só com segurança pública não é saúde; que o jovem na favela também quer ter direito à festa; que não existe só um modelo binário de gênero; que o Estado é laico e não de um Deus só. E onde a gente consegue afirmar isso? Na rua, misturando todo mundo. Então, só por hoje, acordei e resgatei na memória o 18 de maio como dia de festa.
A luta antimanicomial é contra qualquer ato de (des) cuidado que promova violência, que não respeite o direito de ser e viver, que viole o direito à participação na cidade e convivência comunitária, que ofereça como única via de cuidado a abstinência sexual e de drogas, que exija a conversão forçada a uma religião para que se tenha acesso a proteção social e cuidado, que tranque as pessoas compulsoriamente, que só ofereça cuidado a quem pode pagar; que não seja centrada na discussão racial, de gênero e de classe para pensar quem é que a sociedade quer trancar.
É um dia de afirmarmos que erramos enquanto sociedade por um tempo colocando todos os “desviantes” trancados, mas que não vamos mais permitir isso. Ainda temos muitos desafios, mas a luta é hoje e sempre por uma sociedade sem manicômios, atentos ao que se manifesta no miudinho da lida cotidiana, combatendo todas as opressões e em defesa da vida.
Kassia Rapella
Psicóloga atuante em Caps e colaboradora do PerifaConnection
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S.Paul