Por: Jefferson Barbosa e Hallana de Carvalho para a Folha de S. Paulo
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
Teste 3
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
Racionais MC’s – Capítulo 4, versículo 3 (1997)
Da realidade cantada pelos Racionais Mc’cs, em 1997, em “Capítulo 4, versículo 3”, o aumento da presença de estudantes negros nas universidades é a única coisa que passou por alguma mudança nos últimos 25 anos. E isso não aconteceu por acaso. Teve a ver com lutas que seguem sendo bastante necessárias.
A inclusão de estudantes de baixa renda, negros, indígenas, com deficiência e oriundos de escola pública nas universidades federais e estaduais, por todo o país, deve-se a uma série de mudanças impulsionadas por políticas afirmativas implementadas nas últimas duas décadas.
Atrelada a outras políticas de expansão e reestruturação universitária, como o Reuni —Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. É importante ressaltar que tais transformações foram resultantes das reivindicações do movimento negro desde a década de19 70, em contraponto aos mandos e desmandos da ditadura, ganhando ainda mais força no período da redemocratização do país na década de 1980.
Embora as primeiras experiências de políticas afirmativas datem do início dos anos 2000, aqui focamos nas conquistas proporcionadas pela Lei Federal n° 12.711/2012, também conhecida como Lei das Cotas, em seus 10 anos de aprovação.
Num momento anterior à aprovação, quando se discutia se as cotas eram constitucionais ou não, opositores argumentavam que a política seria um erro e estaria fadada ao fracasso, sobretudo por conta do critério racial para a reserva de vagas.
As justificativas se valiam de dados ou da ausência deles, entre os quais destacamos: 1) A política tenderia a baixar a qualidade do ensino nas instituições em decorrência de um possível baixo desempenho dos estudantes cotistas; 2) Não deveria haver critério racial para a reserva de vagas, pois a desigualdade no Brasil é socioeconômica.
Estudos mais recentes, que foram realizados após a implementação da “Lei de Cotas” em algumas instituições, demonstram exatamente o contrário.
De acordo com a pesquisa realizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), entre os anos de 2014 e 2017, com mais de 30 mil estudantes cotistas da instituição, o desempenho acadêmico de discentes cotistas e não-cotistas foi similar em todos os anos analisados.
Uma outra pesquisa semelhante foi empreendida em 2018, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que chegou à conclusão de que o desempenho acadêmico de estudantes cotistas era igual ou similar em relação aos demais estudantes em 95% dos cursos da instituição.
Já em relação à qualidade do ensino nas universidades, segundo dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), as universidades públicas representam 80% das melhores instituições de ensino superior no país. Ou seja, informações cientificamente sistematizadas contrariam a falácia de que a presença de estudantes cotistas diminuiria a qualidade do ensino.
Dados do Consórcio de Acompanhamento de Ação Afirmativa 2022 (CAA22), conduzido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pelo pelo Afro-Cebrap, apontam que em 2001 estudantes pretos e pardos correspondiam a 30% dos matriculados nas universidades públicas do país e atualmente esse número já passa dos 50%.
Entre inúmeras histórias, temos a de Nathália Ferreira, 27 anos. Mulher negra, criada na periferia de Jaboatão dos Guararapes (PE). Ela é recém-formada no curso de licenciatura em artes visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Nathê, como é conhecida, foi uma das primeiras de sua família a ingressar numa universidade pública através do sistema de cotas. Ao longo de sua trajetória acadêmica, conseguiu se manter frequentando as aulas com o suporte da política de assistência estudantil. Outro recurso importante foram os laboratórios de informática e bibliotecas, onde ela pode realizar os trabalhos das disciplinas.
No entanto, a “Lei de cotas” não somente produziu mudanças no perfil dos estudantes de graduação. Seus efeitos se estenderam para outros âmbitos das universidades. As políticas afirmativas de acesso aos programas de pós-graduação têm bastante destaque nesse cenário. Segundo dados do Gemaa, dos 2.763 programas que tiveram seus editais de seleção analisados, 26,4% possuíam algum tipo de política afirmativa no ano de 2018.
Mesmo diante de todos esses avanços, a educação no Brasil segue atravessada por uma série de problemas que precisam ser encarados com muita seriedade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) de 2019, 781.577 crianças e adolescentes, de 4 a 17 anos, autodeclarados pretas(os), pardas(os) e indígenas estão fora da escola, representando cerca de 71, 3% das crianças e adolescentes nessas condições.
Esse dado revela uma grande lacuna existente nos níveis educacionais anteriores ao ensino superior, tornando evidente as dificuldades que muitos adolescentes, sobretudo pretos e pardos, enfrentam para concluir o ensino médio. Outro dilema a ser enfrentado diz respeito ao desmonte da educação pública no país.
Além disso, ao passo que estudantes de baixa renda ingressam nas universidades públicas, aumenta-se a demanda por políticas de permanência, que tem sido um desafio para os gestores das instituições em tempos de contingenciamento de verbas.
Diante dos frutos e das complexidades que são inerentes a qualquer política pública, celebramos os 10 anos da “Lei de Cotas” com o olhar atento aos rumos futuros com o desejo de que esta não seja alvo de retrocessos. Afora o aprimoramento de mecanismos que impeçam as fraudes cometidas por candidatos brancos e de renda elevada, ainda há muito a ser feito para que sejam superadas as desigualdades no acesso de estudantes de segmentos que historicamente foram mantidos longe do ambiente acadêmico.
Hallana de Carvalho
Mestra e doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora em relações raciais no Brasil, ações afirmativas e desigualdade de oportunidades educacionais e integrante do Afronte Coletivo
Jefferson Barbosa
Jornalista, fundador do coletivo Voz da Baixada, integrante do PerifaConnection e da Coalizão Negra por Direitos, [e formado em comunicação social pela PUC-Rio
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo