OPINIÃO | Brasil: Uma brasa que queima há 520 anos

E o que nós temos a ver com o ecocídio que está acontecendo agora mesmo
Charge Lafa

De acordo com a Wikipedia, “Ecocídio é uma expressão que pode ser usada para fazer referência a qualquer destruição em larga escala do meio ambiente”. Há pouco mais de 500 anos, o latifúndio e a monocultura passam por cima de tudo e de todos. Há quinhentos e vinte anos os biomas do Brasil ardem em chamas e são derrubados. Um novo estudo acaba de revelar que a América Latina perdeu cerca de 60% de sua fauna nos últimos 500 anos. Isto é, desde a época do descobrimento até os dias de hoje, 60% dos animais que viviam nestas terras desapareceram, seja devido à destruição direta do meio ambiente ou devido à caça.

Quinhentos e poucos anos se passaram e o cenário não anda muito diferente. Amazônia, Cerrado, Pantanal, Pampa, Mata Atlântica e Caatinga: todos os seis biomas brasileiros estão sofrendo com incêndios florestais recordes em 2020. Só este ano, o Pantanal perdeu uma área correspondente a dez vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas. Desde meados de julho, a região sofre com as queimadas e mais da metade da área do parque Encontro das Águas, lar de onças e outros animais silvestres, foi queimada. 

Em 2019, a Amazônia registrou 89 mil focos de incêndio. A cidade de São Paulo viu o dia virar noite, encoberta por nuvens de poluição como consequência do “dia do fogo”. Chega o meio do ano e o cenário vai se repetindo: incêndios enormes consomem a vegetação nativa, queimam os animais e deixam um rastro de destruição que não respeita limites entre fazendas e florestas, entre o grande e o pequeno produtor, entre estradas e municípios. Em junho de 2020 foram registrados mais focos de incêndio na Amazônia do que no mesmo período pelos últimos treze anos

Queimadas nas Queimadas nas margens do Rio Paraguai (2020). Foto Gustavo Figueroas/SOS Pantanal. Reprodução: G1.

Teste 3

Embora o governo brasileiro faça pouco caso da devastação ambiental que ocorre na nossa frente, os órgãos ambientais do país e até mesmo a NASA já comprovaram que os incêndios florestais estão diretamente relacionados ao desmatamento. Em 2019, fazendas de médio e grande porte foram responsáveis por 72% dos focos de incêndio na Amazônia. Já em 2020, queimadas iniciadas por apenas quatro fazendas foram as causadoras dos incêndios que consumiram cerca de 20% da biodiversidade do Pantanal. Segundo o IBGE, da área total desmatada no Brasil nos últimos 18 anos 42% deu origem a novas áreas de pasto e 16% a áreas de cultivo. Apesar de tudo isso, o governo só confirma sua tendência ecocida ao reduzir o orçamento de combate aos incêndios florestais e ao desmontar a política ambiental.

Já são dois anos de governo Bolsonaro, dois anos de cortes no orçamento de proteção ao meio ambiente. Dois anos de recordes de queimadas, incêndios e perda recorde de biodiversidade. Mais dois anos de floresta sendo derrubada e queimada para fazer pasto e plantar soja. Mais dois anos em que o agronegócio se assume inimigo do meio ambiente, como tem feito ao longo dos 520 anos de história desse país, que, em nome do crescimento econômico, é reduzido a uma brasa ardente.

Autor desconhecido. Reprodução do Twitter.

Como fica a economia e a produção de alimentos?

Ao contrário do que parece, queimar floresta para aumentar área de pasto e plantio de soja é uma conta que não fecha. As lideranças mundiais, cada vez mais atentas à necessidade da preservação ambiental, sabem disso. As queimadas e o desmatamento enfraquecem o solo, tornando-o infértil no futuro. De fato, órgãos ambientais já identificaram processo de desertificação no Cerrado brasileiro. Ou seja, mesmo que se derrube toda a Amazônia, Cerrado e Pantanal para dar espaço ao agronegócio, e que o agro prospere por mais dez, vinte ou cinquenta anos, a partir do momento em que o solo se tornar infértil, não haverá mais onde plantar nem onde pastar. E aí, o Brasil irá vender o que ao mercado externo? Aliás, isso também prova como é burra a posição do governo em apostar todas as fichas no agronegócio, sem gerar emprego em outros setores e deixando deliberadamente de investir em educação, ciência e tecnologia. 

Não há como negar que a produção agrícola é essencial para alimentar a população mundial. O que se critica é o modo como ela é praticada atualmente. Existem outras técnicas que aliam o plantio à preservação da natureza – ao contrário do que alguns dos reis do gado insistem em praticar no Brasil. Os países desenvolvidos – aqueles que ditam as regras do jogo econômico – estão ligados que não dá mais para defender atividades econômicas que colocam em risco a natureza e a biodiversidade. Países europeus têm reforçado suas exigências de proteção ambiental para firmar parcerias comerciais. Exemplo disso é que a atual política ambiental do governo Bolsonaro coloca em risco a assinatura de novos acordos econômicos, como entre a União Europeia e o Mercosul.

É possível sim aliar desenvolvimento econômico e preservação ambiental. De fato, a floresta tem muito mais valor em pé do que queimada. A floresta é a farmácia dos povos indígenas. Imaginem quantos fármacos podem ser desenvolvidos a partir do conhecimento tradicional e da utilização verdadeiramente sustentável e responsável dos tesouros da floresta. O Brasil, com sua grande biodiversidade, tem um enorme potencial para liderar uma economia baseada no respeito à natureza. Derrubar floresta para fazer pasto é dar adeus a esse potencial e jogar no lixo a oportunidade de ser uma liderança global no futuro.

Charge por Alves. Reprodução da internet.

E que mal tem queimar aquele mato ali que não tá fazendo nada?

As florestas prestam um grande serviço à humanidade, porém, como é um serviço “invisível”, muita gente não dá valor. As árvores são essenciais para o equilíbrio do clima, pois ajudam a regular a temperatura e a umidade, influenciando diretamente os regimes de chuva, cheia e seca de rios. Sem contar que os troncos e as copas servem de abrigo para os animais, e seus frutos são alimentos. Sem elas, nós não estaríamos aqui, pois as árvores, junto com as algas marinhas, fazem parte da renovação do ar que respiramos. Reduzir florestas inteiras a “um mato que não faz nada” é ignorar todos os seres que habitam aquele espaço e negar a eles o direito à vida. Além de representar uma mentalidade atrasada de quem só dá valor ao que pode ser explorado e ao que dá lucro.

E isso não é exclusividade do agronegócio no interior do país! Quando a milícia invade áreas verdes ou de preservação ambiental na Zona Oeste do Rio de Janeiro, por exemplo, para construir condomínios clandestinos, o pensamento é o mesmo: destruir a natureza para lucrar com o terreno. Até mesmo construtoras regulares se valem desse pensamento de ocupar áreas verdes para obter vantagens. Em 2015, a construção do campo de golfe para as Olimpíadas do Rio foi alvo de críticas e protestos, uma vez que o local escolhido para as obras foi a APA (área de proteção ambiental) Marapendi, na Zona Oeste. Cinco anos depois, a situação se repete: desta vez, a Floresta do Camboatá, em Deodoro, é alvo de um consórcio que quer desmatar a área para construir um autódromo no lugar que é o último refúgio de Mata Atlântica em terreno plano na cidade do Rio. Investigações do Ministério Público revelaram o envolvimento da construtora em esquema de propina da prefeitura do Rio.

Mas o que eu tenho a ver com isso?

E o que eu e você, que moramos na cidade, temos a ver com isso? Afinal, vemos na propaganda que o agronegócio é bom para a economia do país, e se a economia vai bem, a vida da população em geral melhora, não é? 
Não necessariamente. Pra começar, é bom ressaltar que a prosperidade do agronegócio nem sempre é diretamente refletida na prosperidade da população. Os grandes fazendeiros são os que mais se beneficiam de um crescimento econômico baseado na agropecuária. O agro não é tão pop quanto parece:a maior parte das lavouras do agronegócio é, na verdade, monocultura de grãos, como soja e milho transgênicos, ou cana de açúcar. A maior parte da produção de grãos como soja e milho serve para produzir ração animal para gado de abate. Para garantir alta produtividade (e altos lucros), a monocultura mata toda a biodiversidade e a substitui por uma única espécie de plantio (seja soja, milho, cana, trigo ou outros grãos). Como resultado, a maior parte da colheita é vendida para o mercado externo e uma parte menor fica para a indústria e consumidores nacionais.

Autor desconhecido. Reprodução da internet

E foi exatamente essa lógica que fez o preço do arroz disparar no último mês: a maior parte da safra de arroz foi exportada, e o pouco que sobrou teve o preço aumentado. Ou seja, não é o “agro” que coloca comida na mesa dos brasileiros – ao contrário, ele pode inclusive tirar, como fez com o arroz ao priorizar a exportação e colocar preços abusivos para a população do país. Quem coloca comida na mesa do brasileiro são os pequenos produtores. A maioria dos alimentos naturais que chegam na mesa do brasileiro é fruto da agricultura familiar, responsável pela produção de feijão, arroz, trigo, mandioca, legumes, frutas e verduras. Segundo o Censo Agrícola de 2017, a agricultura familiar ocupa apenas 23% da área agrícola total do país, enquanto que o agronegócio ocupa 77% da área agrícola do país. Mais área para o agronegócio significa menos floresta e também menos área para o pequeno produtor, pois o fogo não distingue uma fazenda da outra.

O que eu posso fazer?

Que opções restam para nós que moramos na cidade, longe de toda a tragédia que está acontecendo na região central do país? A distância pode dar a ilusão que não podemos fazer nada, e com isso trazer a sensação de impotência ou frustração. Mas aqui vão três dicas simples do que podemos fazer para ajudar.

  1. Cuide de sua alimentação. Inclua mais legumes e vegetais frescos, evite os alimentos industrializados. Se possível, busque reduzir a frequência do consumo de carne vermelha, leite e derivados. Como vimos, a maior parte dos alimentos produzidos pelo agronegócio não são para consumo humano! E a pequena parcela destinada ao consumo interno vira ingrediente dos alimentos industrializados, como os biscoitos recheados, salgadinhos e massas congeladas. 
  1. Se informe e compartilhe informação. Por sorte, vivemos na era da informação. Conhecimento é ouro! Tem muita gente boa produzindo conteúdo muito bom e com responsabilidade nas redes sociais. Temos ao alcance dos dedos informação de qualidade para aprender e ir aplicando aos poucos no nosso dia a dia. Abaixo segue uma lista de sugestões de instagrammers e YouTubers que fazem conteúdo sério sobre meio ambiente e alimentação:

Instagram: @favela_organica; @hortanafavela; @comidasaudavelparatodos; @neiderigo; @fakebookeco; @fridaysforfuturebrasil; @fridaysforfuturerj; @amazonianaruarj

YouTube: O que você  faria se soubesse o que eu sei;

Blogs: Favela OrgânicaO que você  faria se soubesse o que eu sei; Come-se; Comida Saudável para Todos

  1. Mostre a sua indignação. Muitas vezes as notícias são desanimadoras e trazem imagens chocantes. Mas não se sinta paralisado ou impotente. Deixe que a indignação seja uma ferramenta para não normalizar o que, além de absurdo, é crime. Comente sobre o assunto com amigos de escola, do trabalho, com seus familiares e principalmente com os jovens.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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